terça-feira, 24 de julho de 2012

Um jantar com estranhos – Capítulo IV – Alaor, o Rei.

Autor(a): D. Matthews.  
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"O manicômio mesmo é limitado pelas paredes que nos cercam."


Pequenos viajantes em taxis desgovernados, rumando para onde a brisa nos deixar, a única maneira de compensar a total falta de cuidado é na música do toca-fitas se encontrar. As ruas estão repletas de corpos que ouvem seus passos, mas não escutam sua voz, de que adianta então poder cantar como os pássaros se os únicos que nos entendem somos nós? Fumaça, dores, vício, cansaço, rotina, medo, sono, pensamentos psicodélicos, morfina, tristeza, dinheiro, fetiche, saudade, falta de valor, atenção, armas de fogo e ainda assim continuamos tão frágeis, a ponto de um mero descuido nos aniquilar.
Lembro que o que agrada mesmo os habitantes desse planeta são surpresas, e também o que mais os assusta, são surpresas que marcam nas memórias as mais inesquecíveis situações e que acabam com os planos mais bem arquitetados. Pisamos nessa terra numa surpresa, um dia, de repente estávamos falando, correndo, pedalando em motocas, éramos os reis da calçada, pilotos de fuga, os indomáveis! Surpresas como a que os mágicos preparam na TV, como o primeiro amor, quem imaginaria que justamente aquela pessoa iria chamar nossa atenção? Se pudéssemos escolher a vítima não seria a mesma coisa. O destino jogou seus dados e ela foi escolhida.

 
Vivemos o mesmo dia todos os dias, acordamos na mesma cama do mesmo quarto com o barulho do mesmo despertador, ou quem sabe acordamos num quarto de um hotel vagabundo numa cidade estranha em dia chuvoso com o canto de um galo desafinado e barulhento. Não deixa de ser o mesmo dia. A melhor recompensa do aventureiro é encontrar aventuras, desbravar novos pontos de vista na mesma janela que abre ao olhar pra fora, precisamos de coisas novas, assaltar um banco, pular da ponte, pilotar um carro desgovernado, dirigir nos trilhos do trem, precisamos jogar num cassino, perder nossas fichas, ir numa lanchonete e encontrar alguém, ver a neve, ao menos por um dia. Se nos restasse apenas um dia, faríamos tudo diferente, mas acabamos pensando no amanhã que nunca chegou, na verdade sempre tivemos apenas um dia, nada mais do que isso.
Surpresas mesmo tiveram os nossos convidados ao chegar ao quintal daquela casa estranha, mal sabiam eles o que estava os esperando, muito menos o que realmente estavam fazendo ali, seria tão melhor estar deitado num sofá empoeirado. Já de relance se podia ver que aquele visual familiar da residência se restringia apenas da porta para dentro. O jardim era limitado por altas cercas de madeira, que, com quase três metros de altura cobriam boa parte da visão daqueles que tentassem espiar de fora, tudo que se podia enxergar do exterior da residência eram majestosas árvores, havia pelo menos dez altas, entre carvalho, cedro, pinheiro, mas ninguém imaginava ver tantos gnomos de jardim habitando suas sombras. De todas as cores, formas e tamanho, ficavam parados, observando, protegendo aquela pequena floresta mística. Escondidos sob as penumbras ao lado das árvores e brilhos que cegavam em torno das roseiras. O solitário homem do chapéu não demorou muito para abrir a boca:
- O que é que esse sujeitinho tem aqui hein? Um exército de gnomos e duendes de gesso? Cada um com a sua mania – pausa para respirar – eu hein!
- De certa forma é um jardim um tanto quanto exótico, aquele cara é assim mesmo, diferente, já viu as tarefas que ele nos passa? Coisa de outro mundo! – Responde Ramon com uma pitada de ironia.
É, mas para quem marca reuniões em banheiros e em casas da árvore esse jardim é mera casualidade! – diz Sebastian, fazendo piada como sempre.
O menino Calisto até ali só observando o lugar, mexendo num carrinho de mão jogado aos cantos, decide então participar também da conversa:
- Falando nisso, o cara lá falou que a casa da árvore ficava no fundo do jardim, mas não estou vendo nada aqui, apenas aquela árvore com escadinha, mas não há nada no topo dela!
- É verdade, e o cachorro? Pelo jeito era só para assustar mesmo, não tem cachorro algum aqui. – completa Ramon.
 Mas foi só ele dizer isso para a fera aparecer, bem que o dono da casa avisou o susto, pois foi isso que tiveram quando viram aqueles olhos furiosos encarando na direção deles. O cão surge de trás da casa e passa a latir furiosamente.
Ao ver aqueles caninos brilhando e seu coração acelerar, eles se entreolham, até que Ramon dá a ordem:
- Vamos voltar lá para dentro! Essa história de que cão que ladra não morde é mentira!
E ao correr de volta para a porta da casa que dava acesso ao jardim, o primeiro a chegar foi Calisto, mas ao tentar abrir a maçaneta, percebe que estão encrencados. O homem que os guiou até ali trancara a porta, e o pior: não havia tempo para Sebastian tentar usar de suas peripécias, a única coisa que conseguiram era ver através do vidro da porta aquele homem que os trancou em pé, rígido, com um olhar gélido e um sorriso sarcástico no rosto. Após isso, era a hora da ópera ter início, onde o cão de pelos negros dá um salto e com seu peso derruba Calisto, que desesperadamente grita:
- Me ajudem! Ele tá me mordendo! – Como se ninguém tivesse notado.
E realmente, o buldogue estava com os caninos fixados no braço direito do moleque, forçando como se fosse um graveto lançado, um osso a roer. Ramon, vendo aquilo tudo, segura firme e eleva a vela acima de sua cabeça, numa cena de louco, parecia um bailarino tentando um passo que acabara de aprender, sua mão esquerda estende com o dedo indicador apontando para sua testa, fecha então os olhos sem dizer nada e inspira fundo. Sebastian olha para aquilo tudo sem entender nada, apenas abraça o cachorro pela barriga, o forçando para tentar afastar suas presas do braço do menino, vendo que seu esforço era ineficiente perto do peso do animal, ainda grita para o outro:
- Vamos Ramon, não há tempo para teatro, ajuda aqui!
Ramon ainda com o dedo da testa e a vela levantada diz algo que se entendia como feu blanc e então abaixa a vela e tira o indicador da sua testa, nesse momento o cão solta o braço do menino e parece se acalmar, mas Sebastian não o larga, com medo que ele possa reagir e se voltar contra ele, nunca se sabe.
É tempo de pausa entre o primeiro ato e o segundo, o cão, parecia hipnotizado, o brilho da chama era imutável, mas algo nas palavras e no gesto do cidadão misteriosamente calou a plateia e o protagonista. Todos fitavam Ramon sem entender que magia, que Mandrake teria feito ele para paralisar o enorme cachorro.
- Está tudo bem Sebá, pode o soltar. – diz o homem da vela.
- Soltar? Está louco? Não viu o que ele acabou de fazer? Quer que ele nos estraçalhe?
O braço do menino sangrava sem parar, manchando sua camisa que já havia sido suja pelas patas enlameadas do bicho, mas ainda assim Calisto não chorava, também não demonstrava sensação de dor, apenas estava assustado e nervoso.
- Tire ele daqui! Por favor! – diz.
Sebastian então o arrasta fazendo uma força maior do que ele aguentava, sem o largar, para o lugar de onde a fera havia saído, lá encontra um velho canil vazio.
Tranca então o feroz bicho em seus aposentos, que por sua vez, entra em sua casinha e deita em seus trapos jogados por lá.
Ao voltar para o local do ocorrido percebe Calisto segurando o braço, ainda muito nervoso, a mordedura causou sangramento que não parava, Ramon tira o lenço do seu pescoço e amarra no local, buscando estancar o corrimento. Ainda assim, continuaram batendo na porta, esperando que pudesse ser aberta pelo homem que até ali não tinha nada além de um sorriso irônico no rosto e um olhar de gelar o coração, mais do que nunca se viam num manicômio, lugar psicodélico, nada estava na devida prateleira, tudo distorcia, gnomos, duendes, árvores de outrora, cachorro de pelos negros no canil, garoto ferido, porta trancada, o que estavam fazendo ali? Como vieram parar em tal situação? Não era apenas mais um dos estranhos encontros casuais de vossa Majestade? O manicômio mesmo é limitado pelas paredes que nos cercam.
Alguns minutos depois estavam Ramon seguido por Sebastian subindo a escadinha de madeira que levava até o topo de uma das árvores, Calisto não estava com eles, não estava mais no jardim, o cão latia incessantemente de sua pequena residência de madeira e parecia incomodado com os visitantes.
Ao chegar até o último degrau, Ramon percebe algo entalhado na casca da árvore na qual subiram, dizia:

Jaime e Beatriz”

A inscrição estava dentro de um coração, muito mal desenhado por sinal. O homem que leu então diz a seu companheiro:
- Nada por aqui, estranho demais.
- Vamos descer, quem sabe haja alguma pista no jardim. – Responde o homem do chapéu.
- Certo. – concorda.
Mas ao tentar se segurar num degrau quando descia, Ramon acaba escorregando e cai de costas no gramado dos gnomos, levando consigo Sebastian junto, os dois caem desacordados no jardim.
Com a vista embaçada e ouvindo uma voz, parece que acordam.
- Muito bem senhores, eu vos agradeço mais uma vez sua fidelidade e sua presença aqui hoje, sei que estão cansados dessas tarefas, mas o passo que deram na reunião dos farinheiros foi de fundamental importância, estamos próximos de um desfecho positivo, ainda peço sua colaboração... – Enquanto falava, os dois colegas o fitavam.
Os dois se viram então na frente do Rei, com a mesma coroa de plástico na cabeça, mas de pijama dessa vez, uma dor forte na cabeça indicava que o tombo não foi dos menores, mas agora estavam conscientes novamente sem entender onde estavam e como foram parar ali. As palavras do Rei demoraram um pouco para serem compiladas, ainda tomados pela tontura, se entreolham, mas ficam calados.
- Sebastian, Ramon, preciso pedir um favor a cada um de vocês.
Agora um pouco mais lúcido, o arrogante Sebastian questiona:
- Mas quê diabos está havendo aqui? Desde que chegamos aqui não consigo entender mais nada! Onde estamos? Que lugar é esse?
Aquele lugar parecia mesmo ser uma casa da árvore, apertada e pequena, com duas janelas bem iluminadas e uma pequena porta na qual uma brisa do entardecer balançava os cabelos dos presentes. O cheiro de incenso era forte, e não demorou que encontrassem a fonte dentro de um vaso no canto da casinha. Entre os dois homens e o líder havia uma pequena mesa de madeira, na qual xícaras de chá.
- Estamos onde foi designado, na casa da árvore do endereço que eu vos passei, não lembra? Acho que anda bebendo demais ultimamente. – Responde o homem da coroa.
- Não me venha com brincadeiras seu paspalho! Você nos mandou até aquele lugar para encontrarmos um bilhetinho seu? Queríamos que morrêssemos por um papel?
- Não. Na verdade pedi ao secretário que trabalha lá para que deixasse aquele envelope em sua gaveta, trabalhei com ele há alguns anos atrás e o avisei que iriam buscar, mas como não sabia se iriam ser bem sucedidos na missão, preferi marcá-la apenas se conseguissem realizá-la, Ramon, como foi o procedimento por lá? – responde o líder.
- Levamos alguns sustos, quando chegávamos ao escritório um homem armado nos interceptou, se não fosse por Calisto estávamos na mão deles agora, mas o homem não sobreviveu, estavam em seis na reunião, mas o delegado Heitor estava entre eles.
Após a resposta do homem cujo lenço agora não estava mais em seu pescoço, o Rei comenta:
- Bem, eu já suspeitava do envolvimento de uma autoridade entre eles, já sobre o homem que mataram, ouvi sobre ele no noticiário, parece-me que era um mero vigia noturno contratado pelos farinheiros, mas não há suspeitas de vocês pelo que sei isso é bom.
Sebastian não se contenta e se intromete:
- Mas e quem eram os outros, já que parece estar sempre à frente da situação?
- Eu ainda tenho de investigar, mas escutem, tenho algo novo para vocês fazerem...
Mal terminou e já havia interrupção de Sebastian:
- Antes responda como viemos parar aqui! Pelo que me lembre, estávamos procurando seu esconderijo quando caímos da árvore, não é?
O Rei o encara e diz:
- Exatamente, mas o que vocês não sabiam é que a árvore da qual caíram é a mesma em que estamos agora, vocês subiram até o fim dos degraus, mas a casa está num galho mais alto, será que não notaram a camuflagem das folhas? Parece realmente um galho qualquer, mas está bem disfarçada.
Os dois então se olham e percebe o quão distraído cada um foi. Serve-se de chá, o Rei então prossegue o que dizia:
- Sebastian, gostaria que fosse ao Dills Pub, pois pelo que sei o delegado frequenta o local assim como você, mas nas segundas-feiras à noite, vou lhe entregar uma chave que consegui e peço que observe o cara e traga mais informações, se for preciso o siga quando ele sair...
- Que tipo de informação? Cor da camisa? Quantos cigarros fumou? Quantos pileques bebeu? – Questiona.
- Qualquer informação será útil caro Sebá, é o momento de nos concentrar em encontrar o chefe deles. – responde.
Agora olhando para Ramon, o Rei prossegue:
- Quero que você visite o colégio Santa Marta no bairro do Limoeiro, lá quero que peça ao diretor uma assinatura desses papéis que vou lhe entregar. Dessa vez terão de se separar. Podem me encontrar aqui nesse mesmo local assim que conseguirem o que eu lhes pedi. Se fizerem tudo corretamente não terão problemas maiores para realizar isso, enquanto isso ouvi que haverá uma nova reunião dos farinheiros na próxima quarta, podem ficar tranquilos que mandei um enviado fiscalizar e dessa vez se infiltrar entre o grupo deles. Vemos-nos assim que tudo se resolver meus amigos, obrigado!
- Eu não sabia que tinha outros comparsas com você! – diz Ramon.
Ele responde:
- Há sim, chama-se Calisto, é um garoto apenas.
O Rei dessa vez não quis responder mais questionamentos, sai correndo, pisa sobre a mesa e derruba o bule de chá que passa a derramar sobre a casinha, após o salto, passa entre seus convidados e pula pela portinha da casa da árvore, sem se segurar em nada, um legítimo salto de vinte metros de altura. Quando Ramon se vira para trás para avistar, já havia desaparecido.
Sebastian aproveita para puxar papo com o colega:
- Como ele sabia que eu frequento o Dills? Esse carinha anda de sacanagem pro meu lado!
- No fundo ele sabe de tudo, melhor até que o FBI, talvez até seja um agente policial nessa cidade de fim de mundo! Se bem que aqui não precisamos ir muito longe para saber da vida alheia – Responde com ironia Ramon.
Após isso se vê Calisto deitado num velho sofá marrom, as luminárias do teto tornam possível se enxergar naquele ambiente com cortinas púrpuras fechadas, em sua frente, no outro sofá, estava o homem que os guiou à porta um pouco mais cedo. Esta pessoa, vestida com um casaco preto tinha um semblante calmo, agora com a luz acesa se podia ver melhor seus olhos, eram marrons e grandes, usava óculos, a barba estava feita e ele tinha cabelo curto. Calisto o encara antes de iniciar o assunto.
- Por que não abriu a porta quando batemos? Por quê? Olha meu braço como está!
- Foi preciso. – Respondeu o sujeito.
- Como assim? – questiona.
- Precisa encarar desafios todos os dias, não é isso que faz quando sai de casa? Mesmo quando vai pra escola e gazeia aula para frequentar as reuniões daquele maluco, você dá a cara pra bater! Se não fosse assim, melhor seria ficar deitado na cama o dia todo, e se você sai pra fora, precisa estar preparado para lutar contra cães raivosos, e cães são um dos menores desafios que pode ter, há pessoas lá fora, elas sim você precisa temer! – explica ele.
- Eu já não sinto tanta dor, na verdade, não dói, mas você podia ter aberto a porta, poderiam ser meus amigos que estariam feridos! – diz o menino.
- Se preocupa com eles? – pergunta o homem misterioso.
- Me preocupo com meus pais. – respondeu.
- E seus amigos? – volta a perguntar.
- Se não fosse Ramon eu estaria morto, não entendi o que ele fez, mas ele me salvou, assim como já o salvei antes, acho que esse é o significado, ele não quer que eu morra, eu também não quero que ele se vá, quero saber mais sobre ele, sim, acho que me importo com eles. – diz Calisto.
- Interessante! Alaor me pediu que te informasse da nova missão. – diz o homem.
- Quem?
- Ahh, é do feitio dele mandar em todo mundo sem ao menos se apresentar antes, Alaor é o homem com quem vieram encontrar hoje. Permita me apresentar, me chamo Baltazar, muito prazer. – explica.
Ainda um pouco desconfiado por Baltazar tê-los trancado porta afora, o garoto fica em silêncio. Já conhecia Alaor de tempos atrás, mas era a primeira vez que ouvira esse nome. Não satisfeito, Calisto busca mais informações:
- O que você é do Rei?
- Nada, não temos parentesco algum.
- E então?
- Eu apenas alugo o quintal pra ele, isso inclui a casinha na árvore. Um dia ele apareceu aqui em casa, bateu minha porta, parecia um mendigo quando chegou, roupas velhas e um cobertor fedido, eu mandei embora, mas ele voltou, e eu o disse: “Volte amanhã”, no dia seguinte ele voltou dizendo: “Disse que iria me ajudar hoje”, então eu disse: “Hoje não, eu disse que amanhã”, então rimos e um dia ofereci a casinha lá atrás pra ele dormir, já estava caindo aos pedaços, um dia pertenceu a minha filha, eu quem construí, mas hoje minha filha está casada e morando fora do país. De certa forma Alaor me surpreendeu.
- Por quê? – questiona.
- Aquele quintal lá atrás quando ele chegou era um matagal, depois que minha esposa se foi eu parei de me importar com a casa, caí em depressão, nada mais fazia sentido, mas Alaor se dedicou também a me ajudar com o quintal, decorou com aqueles gnomos de gesso que ele mesmo fez e pintou, cortou a grama e sempre manteve tudo tão bem organizado.
Nesse momento o menino apenas ouvindo interrompe:
- Mas o que houve com sua mulher?
Ele, um pouco constrangido, um pouco tímido explica:
- Eu a perdi.
O garoto se interessa mais pela vida do homem que conhecia Alaor como ninguém.
- Um dia também perdi alguém essencial pra mim, é difícil falar sobre isso, mas não sei, acho que as pessoas tem data de validade também, não são pra sempre.
Então Baltazar prossegue:
- Tem razão, cada uma tem certa importância, e ficam por um tempo também, há aquelas que conseguem transformar pequenos instantes em grandes momentos, há os que estão ali há muito tempo, mas sabemos que uma hora temos que nos virar e depender de nós mesmos. Mas quem você perdeu?
- Minha irmã... e... – o garoto fica com as bochechas vermelhas – uma garota.
O homem responde:
- Sua irmã morreu?
- Sim, foi atropelada – responde.
- Meus pêsames, deve ter sido difícil pra você!
- Eu já superei, já faz algum tempo que aconteceu, ela era minha única irmã, mas quem sabe ela esteja em algum lugar especial esperando que eu possa orgulhá-la. – dialoga o pequeno rapaz.
- Ela deve se orgulhar, pode ter certeza, você é um garoto esperto, está no caminho certo, Alaor pode ter sido um mendigo um dia, mas é um homem sábio e honesto. Quanto ao meu caso, minha antiga esposa ainda está viva, mas fugiu com outro homem, é uma pena eu nunca ter sido suficiente para manter ela ao meu lado, nunca somos bons o bastante, eu mesmo acabava por me dedicar demais ao trabalho, pouco a família.
- Você não trabalha mais? – pergunta Calisto.
- Eu sou caminhoneiro. – responde.
- Entendi.
Então, Baltazar prossegue:
- Até por conta das viagens, tinha de deixar minha esposa e filha sozinhas em casa, enquanto passava longas jornadas na estrada, há desconfiança também, depois que minha filha se formou e saiu e minha mulher se foi também, mal tive tempo para cuidar das coisas, ainda bem que Alaor apareceu pra me dar uma mão.
Calisto apenas concorda com a cabeça, mostrando que entendeu o que o homem queria dizer, o homem então continua:
- Mas quanto a essa garota que falou que perdeu, não desanime, na sua idade há muitas dessas paixões pela frente.
- Não haverá outras, ela foi a única. – discordando.
- Como assim? – questiona.
- Depois que minha irmã morreu eu fiquei muito triste, fugi de casa, tentei saber o porquê, porque ela me fazia muita falta e eu chorava muito quando pensava nela. Achei na beira da estrada um lugar cheio de árvores, uma floresta, foi à noite, estava totalmente escuro, ouvi um barulho, parecia um grito de alguém e eu entrei na floresta, lá vi um buraco enorme, não dava pra ver nada, eu não via o fundo, apenas escutava a voz conforme me aproximava, parecia que havia alguém lá, mas eu não sabia como ela foi parar lá.
- E o que fez? – pergunta Baltazar.
- Tentei responder, perguntei quem era, mas eu era muito burro ainda, eu não sabia o que fazer. A voz parecia mais calma quando ouviu a minha, tentou saber quem eu era, mas foi então que quando eu tentei chegar mais perto escorreguei e caí também. Era um buraco enorme, parecia sem fundo, quando eu caí, desmaiei, e quando acordei estávamos nós dois lá dentro.
- O que aconteceu daí?
- Eu não vou conseguir falar sobre isso, desculpe.
O braço mordido de Calisto parecia não incomodar mais, Baltazar havia feito um curativo, mas o que realmente doía no menino era o coração, seus olhos começaram a chorar quando tentou tocar no assunto. O homem à sua frente se mostrou compreensivo:
- Em quase todos os caminhos acabamos do jeito que viemos, quando conhecemos alguém esperamos que essa pessoa faça as coisas que esperamos que faça, converse conosco, se sinta bem ao nosso lado, quando ela faz algo distinto, quando as coisas não ocorrem como o combinado, ficamos magoados, queremos ser quem controla, às vezes achamos que temos o controle das coisas e de como outros precisam agir para nos satisfazer, mas ninguém quer ser palhaço, esse foi meu erro, deixe soar, tudo vai ficar bem!
Mas quase se esquecendo do assunto principal, Baltazar então prossegue:
- A missão que o Alaor passou foi primeiro que descanse, espere o braço cicatrizar, relaxe, ninguém faz nada direito quando está cansado. Depois ele pediu para que venha até aqui de volta e pegue com ele a chave de um galpão, ele não quis me dar a chave do galpão porque não quer que vá antes de sarar, ele te conhece bem.
O menino concorda e então se despede de seu novo amigo Baltazar e vai para casa. Dia difícil, ainda pensando em como explicaria para os pais o machucado no braço, já que estes pensavam que ele iria fazer uma visita a seu colega de escola, que nem cachorro tem, mas talvez inventar uma mentira de que um cachorro avançou nele enquanto caminhava pela rua fosse a melhor solução. Ao deitar com a cabeça em seu travesseiro, horas depois, volta a pensar em certas coisas.
É nesse momento em que uma sequência de flashbacks passa por sua cabeça.
- Como é seu nome? – pergunta a misteriosa menina.
O garoto ainda um pouco desnorteado por conta do tombo demora um pouco para responder:
- Calisto e o seu?
- Amanda, prazer. Mas o que estava fazendo por aqui à uma hora dessas?
- Eu ouvi um grito, vim ver o que estava acontecendo.
A menina responde:
- Sim, mas o que fazia numa estrada àquela hora? E sozinho?
- Eu fugi de casa.
Mal se podia ver o rosto um do outro, o breu naquele lugar frio, úmido e desagradável permitia apenas que se pudesse ouvir a voz.
- Eu também, mas você pulou aqui? –questiona ela.
- Não, eu escorreguei, não dava pra ver nada. – responde.
- Que pena, então está aqui por minha causa? – Ela pergunta meio constrangida, mas dá uma risadinha no final.
- É, mas o que está fazendo aqui? – curioso pergunta.
- Eu na verdade faço parte dos rumos do seu futuro, me encontrar aqui vai mudar sua vida e por coincidência do destino te fiz cai aqui, para que pudéssemos nos conhecer e fazer sentido a sua vida, tá, é brincadeira. – ela dá outra risadinha e continua - na verdade, fui jogada aqui.
O garoto então se assusta com o que ela diz, e pergunta:
- Nossa! Quem fez isso? Por quê?
- Eu sou matriculada em um colégio rigoroso, meus pais me mandaram pra lá, eles acham que sou uma delinquente, lá nesse colégio ninguém gosta de mim, eu só tenho uma amiga, todas as outras garotas me odeiam. Tivemos uma aula de campo, para pegar umas plantas aqui perto, uma dessas meninas que me odeia aproveitou que ninguém estava perto e me jogou aqui dentro, pelo jeito ninguém sentiu minha falta, não faço falta mesmo. – ela responde já um pouco conformada com a situação.
- Mas e seus pais? – pergunta ele.
O buraco apesar de fundo era largo, cada um estava encostado em um canto, mas ainda assim havia uma distância considerável. Ela responde a pergunta:
- Eles não moram mais comigo, estudo num colégio interno, eu moro junto com as outras garotas, meus pais me mandaram pra cá... – ela respira – é, no fundo não sou uma garota legal.
- Também não sou legal – diz ele – nada mais me importa, não quero saber de mais nada, odeio tudo isso aqui, odeio!
- Me odeia também? – pergunta ela.
- Não, eu nem conheço você.
- Mas disse que odeia tudo – completa Amanda.
- Não odeio você, desculpe, não sei o que fazer.
Nesse momento o moleque cai em lágrimas.
Calisto então retorna para o momento em que está deitado em sua cama, se preparando para ir dormir, tudo aquilo era intenso demais pra ele, mas se havia alguém a quem agradecer era àquela menina e o Rei, não sabia o que viria, mas estava pronto para tudo que viesse e às vezes a vontade de desistir é maior que a força para resistir, mas aprendera com um velho mendigo e andarilho que se não mantivesse a esperança e a coragem jamais sairiam do lugar.
São nos piores terrenos que podem ser construídas as mais resistentes paredes, esquecemos o guarda-chuva em casa e fomos pegos de surpresa, é difícil caminhar debaixo da chuva forte, tão forte que mal se pode enxergar, mas chegar encharcado em casa é sinal de que no final tudo acabou bem, apesar de tudo, tudo tem um fim, mas nunca acaba.
 

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