Autor(a): D. Matthews.
"Quando isso acontece, nada mais faz sentido na cabeça dele, mas quem diz
que um dia pudesse fazer?"
Estamos trocando passos em calçadas de vias insanas e nosso respirar se
torna ofegante à medida que nos aproximamos daquele breu. Esperamos que o
ônibus pare num ponto desconhecido, mas nem mesmo sabemos que ônibus pararia em
uma rua tão distorcida, torcemos para que possamos voltar bem, dormir em nossos
lençóis companheiros, mas nem mesmo temos passagem. Quem sabe um dia ele
chegue, quem sabe um dia deixe de esperar e tenhamos a certeza que virá. Estar
perdido faz parte da vida.
Mergulhando na imensidão negra daquele lugar, uma claridade chama a
atenção de todo e qualquer viajante que possa caminhar naquele beco, sem nome,
sem saída, sem direção. A chuva se materializa na forma de uma suave garoa, e,
passadas das duas horas e dezessete minutos, se torna trilha sonora ecoando nas
paredes das residências próximas. A fonte luminosa é oriunda de um bar antigo,
um letreiro de neon indica o nome do local, e alguns vestígios luminosos na
porta mostra que ainda está aberto.
- Não! – disse o rapaz sentado
ali em frente ao balcão de madeira. Ofegante, cheio de incógnitas em seu olhar,
variáveis desconhecidas, respirando um ar sujo de uma miséria espiritual. De
onde vinha ninguém soube, quem dera poder dizer para onde irá.
Um ‘não’ pode ter diferentes significados, pode-se ter diferentes
questões vinculadas a um simples não, usualmente uma negação, mas também pode
ser a libertação, pode significar coragem ou medo, pode significar amor, pode
significar ódio, pode ser a última palavra, como pode ser a mais dolorosa a ser
ouvida, a única coisa que se deduz, é que eles estavam no bar.
Bar, esse sim tem um significado especial, um local onde as pessoas
trocam os papéis estampados ganhos com seu trabalho, tal qual uma criança troca
figurinhas, homens que gastam em álcool, oh doce álcool, oh doces amigos que
fazem companhia nessas horas, horas em que até mesmo o mais seguro dos senhores
precisa injetar uma dose de esquecimento em sua garganta, todos eles tem uma
máquina do tempo dentro de sua cabeça, mas precisam esquecer e não querer
mudar, ter uma amnésia, pelo menos até que os relógios apontem que tudo está de
volta ao normal. Como seria fácil se houvesse uma tecla “Apague” nos nossos
rumos, não precisaríamos daquelas situações de lembranças ruins, nada
precisaria ser queimado, incinerado na memória, seríamos como máquinas, programadas
para apagar o desnecessário, programados para esquecer as situações injustas e
vivermos em um mundo feliz e ideal, um mundo ilusório, pois ficaríamos
contentes com o pouco que nos dão, e assim, até mesmo os bares deixariam de
existir, com suas lindas prateleiras de mogno portando todas aquelas atrativas
garrafas, aqueles quadros nostálgicos da guerra, aqueles homens estranhos
sentados nas mesas e até mesmo as garçonetes mais gentis, todos seriam
apagados, pobres garçonetes. Não há um
mundo de Truman passando na velha TV 14 polegadas, nossas ações não serão
televisionadas.
Mas voltemos ao contexto onde estávamos. Era madrugada de sábado para
domingo, aquele era talvez o único bar aberto naquele intervalo de tempo, todos
os donos de bares deveriam estar confortáveis em seus sonhos e pesadelos, mas estavam
em uma cidade onde a criminalidade não era feita por assaltos a mão armada, já
não se via sujeitos injustiçados pela história, não havia morcegos tentando
sobreviver à custa do trabalho de outros, afinal ali não se tinha essa opção, e
se houvesse, na primeira tentativa estaria caído ao chão, se contorcendo com
uma bala queimando seu peito. Digo isso, pois o porte de armas de fogo era
permitido tanto aos comerciantes, quanto aos cidadãos localizados num bang bang urbano, onde o medo tomava
conta dos desajuizados. A principal forma de violência naqueles ares era o
crime organizado, corporações de gente disfarçada de homens de bem, mas que no
fundo precisavam se reunir e discutir, utilizando a luz do raciocínio para criar
rotas para que tudo dê certo e eles pudessem finalmente comemorar com um bom
vinho ao final do plano.
Mas, falando em vinhos, um dos homens ali sentado agora se dirigia a
garçonete, digo um porque na verdade apenas dois clientes presenciavam a
ocasião, ao menos na mente de um deles, com voz grossa pede:
- Suzan, um tinto suave aqui!
- Só um minuto senhor! – responde a garçonete com a gentileza de sempre,
costumes rotineiros, mas não pensemos que seja uma pessoa gentil, não, não há
como provar, não há um indicativo de nível ou de seus pontos de vida sob sua
cabeça, são aspectos variáveis, correntes alternadas fluindo num fio sem fim,
quem hoje pode servir seu café, amanhã pode te exterminar, não confiemos em estranhos
e sim nas possibilidades.
A televisão estava ligada, substituindo os velhos sucessos da Dance que
tocavam na rádio naquela hora. Estava passando o noticiário da madrugada e a
notícia principal falava sobre um cadáver encontrado no moinho na madrugada
anterior, pensando bem, quanta coisa acontece nesse período hein? Para nós
parece que tudo para e o João Pestana vem nos visitar colocando areia nos
olhos, mas para os olhos que nunca se fecham há uma imensidão de coisas
acontecendo.
- “A morte desse sujeito ainda é um mistério, autoridades locais
questionam a possibilidade de assalto, mas segundo os donos do local, o homem
reconhecido como Julian Dominguez, de 44 anos, não era empregado e nem possuía
vínculo com aquele lugar, a polícia está investigando se a identidade é
legítima, uma vez em que ninguém se manifestou como conhecido do sujeito”.
Assistindo o noticiário enquanto aguardava o seu vinho tinto, o sujeito
ali comenta:
- Esses desgraçados saem do esgoto, parece até saído de fábrica, ninguém
o viu, ninguém o conhece, sabe-se lá o que fazia de madrugada num lugar
daqueles, num lugar assim só se rouba ratos!
- Está cogitando a possibilidade de haver uma fábrica de robôs na nossa
cidade Jeremy? Não está assistindo muita ficção? – responde o sujeito que estava
ali ao seu lado, sentado em frente ao balcão.
O homem então dá um gole no vinho, continua:
- O que quero dizer é que antigamente não se tinha isso, formávamos uma
quadrilha e assaltávamos um banco, se alguém era pego todo mundo sabia quem era
e até mesmo conheciam a família do ladrão, hoje aparecem esses malucos
projetados, sem endereço, parece até ficção mesmo, ninguém sabe se é mocinho ou
é bandido. – completou o tal Jeremy.
- Tem razão, eu ainda lembro certas ocasiões em que me safei por pouco,
como na vez do desfile de cadáveres, matei três só naquela noite, e sabia
exatamente quem eram, quando a polícia estava prestes a me pegar surgiu alguém
que me salvou. – diz seu interlocutor.
- O tal “Rei”? – pergunta o sujeito do vinho.
- Isso – responde o homem do seu lado.
Tudo silenciara dali em diante, o vinho acabou, sobrando somente uma
taça e a garrafa sobre a mesa, sua conta foi paga, os dois se despediram e
foram embora, cada um para seu lado. A garçonete então finalmente fechou seu
estabelecimento, desligou a televisão após a saída dos seus últimos fregueses.
Mocinho ou bandido, o homem que acompanhava Jeremy vivera os dois lados
da mesma moeda, suas botas negras e suas calças velhas já haviam conhecido as
folhas de uma árvore que talvez jamais tivesse existido, seu chapéu foi molhado
pelas gotas de uma chuva negra e fria, mas também acariciado pelos ventos do
norte e as brisas do sul, sua cultura não vinha de livros em estantes
empoeiradas ou mesmo de diálogos com homens bêbados em lugares escuros, vinha
de caminhadas. Conforme pegava a estrada conhecia novas faces, com semelhanças
e diferenças para aquelas que ele já conhecia, nunca mendigou ou assaltou,
nunca precisou ser injusto para chegar ao ponto que chegou, pode ter disparado
algumas vezes, tirado vidas, mas jamais deixou de ser justo no que fazia,
escapara da morte, vivera perdido também, tinha seus defeitos, mas pouco ligara
para estes ou os de qualquer outro que pisasse em sua frente, preferia entender
outras coisas. Outras coisas...
Tudo é tão incompreensível quando se está perdido, mas quando se
encontram migalhas de pão caídas sobre o solo parece que a saída seja só
segui-las, mas não há migalhas de pão, não há uma saída real, para dizer a
verdade nunca houve dois homens naquele bar, havia uma garçonete formosa e um
sujeito desajeitado. Transformou-se o Dill’s
Pub em ponto de ilusões.
E Sebastian, assim como era conhecido, um dia teve de se safar com as
próprias mãos, todos aqueles postes acima de seus ombros apontavam para uma
direção em que um dia precisou seguir, foi militar, começou cedo com
influências de seu pai e um dia atingiu o ápice, mas o ápice para muitos é
atingir o nada, pois sucesso, fama e reconhecimento é o fundo do poço, chegamos
sem nada nessa rodoviária, deveremos partir sem nada também quando o próximo
ônibus chegar, apenas com nossas botas gastas de tanto caminhar. Utilizemos
nossa máquina do tempo então.
Era fevereiro e ele estava sentado em cima de uma pedra maciça, que
parecia um banco de praça pelo seu formato. O céu estava cinza, possivelmente
iria chover mais uma vez e todos se molhariam dentro de meia hora. Acompanhado
por dois sargentos e o coronel, o homem da pedra questionava os âmbitos da
missão:
- Acho que isso não vai chegar a lugar algum, não podemos nos preocupar
em atacar a base deles, por mais que tenhamos os descoberto, muitos deles
estarão por lá, mas os principais não estarão, devem estar preparando uma
surpresa, vamos acabar com bonecos, mas os ventríloquos continuarão a solta.
- Se eles não tiverem bonecos não poderão trabalhar – responde um dos
sargentos que estava em pé, parado próximo a uma árvore.
- Estaremos nos arriscando em vão, não entendo esse general, podemos
acabar com todos eles, estamos em melhor momento, nosso exército é mais bem
preparado, mas há um caminho mais fácil, se atacássemos diretamente o alto
escalão eles perderiam as bases, isso acabaria com as chances de defesa –
contesta o homem sentado ali naquela pedra.
- Você é apenas um capitão, não deve questionar as ordens de um general,
sabe disso – Responde com tom áspero o coronel.
- Essa questão de patente é só na teoria, quando o couro come cada um
age como bem entende, não estou dizendo que posso fazer o que eu quiser, mas
que talvez devessem olhar ao seu redor e enxergar mais do que o que querem ver
– rebate o sujeito ali.
E de certa forma ele estava certo, exatamente oito minutos e quarenta segundos depois
da última discussão ali, sob um céu cinzento como todo céu de dias incertos, aparecem alguns soldados rivais, na verdade eram quatro, camuflados e escondidos atrás de um arbusto próximo, que num ataque surpresa
acertam em cheio os sargentos com seus rifles delirantes, o peito do coronel foi perfurado e a perna do capitão recebeu apenas um corte de raspão, mas este
consegue escapar, talvez alguém queria que esse jogador vivesse por mais um tempo, coisas que só acontecem uma vez na vida. Correndo direto para o acampamento, esperando encontrar mais
gente sã, já que o tiro apenas raspou na sua coxa.
Os rivais haviam se adiantado aos planos, porque nem sempre as coisas
acontecem como se espera, se isso acontecesse, não haveria graça nenhuma em se
ter planos, em se gerar expectativas, porque tudo que quisesse estaria em suas
mãos, como num passe de mágica. Ao chegar ao acampamento vê tudo destruído, mas
uma cena consegue tocar seu coração gelado. Há uma questão de tempo, de projetos,
se não agir na hora certa se acaba perdendo o pouco que se tem.
Havia desde menino sido treinado para não deixar sentimentos tomarem
conta de sua razão, havia sido treinado para não amar, porque se precisa de
guarda-costas no país, precisa-se de almas vazias que não tenham medo de
entregar sua vida quando alguém arriscar tomar conta de sua terra natal,
defensores da pátria, lutando por liberdade enquanto os miseráveis milionários
estão sentados em suas poltronas bebendo café. Utopias nas quais deitam a noite
para sonhar, mas não se pode sonhar com o amanhã. Seu pai dissera-lhe que ser
soldado e dar a vida pelo país era a maior honra de uma pessoa, mas na verdade
caem sobre uma terra manchada, porque aquilo que defendem é marcado pela
injustiça, pelo poder de poucos, pela fome e só restam sonhos.
Naquele momento já não era mais capitão, ou mesmo vestia uma farda,
porque no momento em que viu seu pai ali em sua frente, deitado no meio de
tantos corpos perdidos, volta a ser criança e lembra-se de tudo o que significava.
O velho homem pode ter sido rígido, lhe cobrado disciplina ou obrigado a seguir
carreira militar, mas jamais quis ver seu filho infeliz, queria que seu filho
tivesse a oportunidade de chegar mais longe do que ele próprio, mas ali estavam
agora, em combate, com o filho machucado na perna, com o pai morto no chão, a
guerra é dura, a batalha é cruel, mas quando chega a hora, não há muito o que
dizer.
Chorando estava naquele momento, com sua cabeça encostada no corpo de
seu antecessor, se não podia deixar os sentimentos tomarem conta, naquele
momento nada dizia, apenas sentia, não havia como não se comover, mas sua
comoção durou pouco tempo, aquele lugar estava repleto de cadáveres, um
cemitério de corpos a apodrecer. Mas assim como nem sempre todos se vão,
aparece, pouco depois, outro sobrevivente, sargento franzino, desesperado e
entra gritando:
- Vamos, levante! Precisamos sair daqui, eles voltarão logo!
O sargento pouco entendia o gesto do capitão, jovem prodígio, parecia
estar querendo morrer ao lado de seu pai.
- Não está me ouvindo? Não há tempo! Perdemos essa batalha, não queira
morrer também! Eles tomaram a base do oeste, ainda podemos seguir para o norte
pela floresta e contra-atacar, não fique aí parado! – prosseguiu.
O homem ali chorando então seca suas lágrimas, levanta-se e ambos correm
em direção setentrional, o sargento na frente, e o capitão, mancando um pouco, logo atrás. Lágrimas dolorosas foram aquelas, não há dor mais dura do que perder um dos poucos que ainda se importa com você, pouco antes de evacuar, havia usado um kit de primeiros socorros encontrado em meio a bagunça estabelecida sob as terras vermelhas do acampamento militar e fez um curativo em sua perna.
Ambos haviam sido convocados em fevereiro do mesmo ano para a missão de
pacificação de uma região que havia sido tomada por rebeldes, estavam
tranquilos, em suas cadeiras, vivendo a vida de um sujeito normal, com suas obrigações,
seus compromissos, mas estavam em sua zona de conforto. Comunicado ingrato àquele
que chegou numa tarde de sol. Seu pai já o havia avisado para se preparar,
havia avisado que as coisas estavam piorando e que logo teria de encarar sua
primeira batalha desde que começou a servir o exército, mas naquele momento
tudo o que precisava era aproveitar a sua liberdade. Dois meses depois, estavam
lá, ele e seu pai, despedindo-se de seus familiares para embarcarem em missão
de paz.
Voltando ao combate, Sebastian ainda consegue olhar a inscrição no
uniforme do sujeito, escrito “Lambert” antes de partir correndo às costas dele.
Partem em retirada, buscando, em meio a todas as árvores um lugar seguro, pelo
menos para que pudessem descansar, sabiam que aquela floresta não corria o
risco de ter soldados inimigos, uma vez que os rivais haviam partido para o
sul. Após horas correndo sem parar, talvez nem ele sabia mais quanto tempo já fazia quando deixaram tudo para trás, suas caminhadas eram sua diversão, outra vez, sua mente havia se perdido, não sentia mais cansaço, não tinha mais noção do tempo, apenas não poderia deixar de correr. Ao cair da noite, quando já exaustos, encontram uma pequena cabana construída
com tábuas de madeira em meio as enormes árvores centenárias, parece ser de
algum caçador, mas precisava-se descansar, ali era um bom lugar, longe do local
do confronto, local desconhecido para as tropas rivais, eles batem na porta da
cabana e depois de algum tempo percebe-se que não há ninguém ali, então, como
eram treinados para esse tipo de situação, abrem a porta com determinada
facilidade e adentram o local.
Para a surpresa deles, estava tudo muito bem conservado, era pequeno,
mas estava limpo, organizado e havia suprimentos na cozinha e um caderno em
cima da mesa. O sargento Lambert o pega, folheia-o e então anuncia:
- Olha isso, capitão, parece ser um caderno de poemas, será que o dono
dessa cabana é alguma espécie de poeta silvestre? – com certo sorrisinho irônico
no rosto.
Sebastian se aproxima e olha também o velho caderno, não havia nomes,
nem assinaturas de quem as escrevia, mas ali estavam pelo menos 40 poemas
falando sobre diversos temas, parecia ser algum escritor desconhecido, mas por
que ele deixaria seu caderno em cima da mesa? Será que voltaria logo para casa?
O capitão e o sargento não se importam com isso e arrumam suas coisas para
passar a noite ali.
Já era passado da meia noite quando Sebastian acende um lampião
encontrado em meio à dispensa, o cheiro forte de querosene se torna o aroma do
local, mas conseguem enxergar melhor com a claridade oriunda do objeto, ele
então o pendura perto da porta, então se senta numa cadeira próxima da mesinha
de dois lugares ali no centro da cabana onde viaja em pensamentos sobre tudo o
que tinha ocorrido naquela tarde. O sargento Lambert, com sua franja de cabelo
castanho decide se deitar num colchonete que trazia em sua mochila. Um pouco
antes de se deitar, capitão Sebastian senta-se nas escadas de acesso da cabana,
e fica pensando um pouco mais, leva consigo o lampião que encontrou na cabana e
o caderno de poemas. A chama do lampião é cercada por vagalumes e outros
insetos, que distraídos se deixam levar, acreditando ser luz do luar. O homem,
ainda fardado então abre o caderno na página 15, e passa a ler um poema chamado
O observador:
“Casamos em setembro, morremos em dezembro,
Nascemos em janeiro, crescemos em abril.
Aprendo a pagar por cada um dos meus erros
Hoje vivo no deserto, não carrego meu cantil.
Cada dia me mostra que sou tão só,
Só um homem encarando a imensidão.
Antes só do que perseguido por pessoas
Cada paisagem aqui me faz perder a razão.”
Então após terminar de ler, de repente ouve um barulho estranho vindo do
meio da floresta, se assusta, pode ser um soldado inimigo, um animal furioso,
apenas ouve folhas se mexendo, mas levanta-se logo, toma o caderno e o lampião
em suas mãos e se esconde para tentar descobrir o que é que se aproxima.
Esperava um lobo, um urso, um soldado aliado ou rival, mas nada naquele momento
o teria assustado tanto quanto o que viu.
No meio daquilo tudo, depois de tudo o que passou desde criança, treinou
em florestas talvez mais escuras do que aquela, habitava solos úmidos e dormia
sobre a luz do luar, acampou, fez fogueiras, onde ao lado de outros aspirantes
cantavam canções populares, se cortou, se feriu, sofreu, mas se levantou, até
que chegou um ponto em que a queda era mera queda, já não sentia mais a dor ou
o psicológico. Mas então, quando tudo desmoronava sobre seus ombros, o cigarro
fora sua companhia, o tranquilizava, tal qual um analgésico para o momento, o
fazia lembrar que já não havia tempo para descanso, precisava continuar sua
caminhada, suas enormes caminhadas que fazia para se distrair, quando jovem
atravessou 127 km em duas etapas, queria sentir os ares adentrando suas narinas
até passar por seus pulmões, era viajante, mas sempre caminhava sozinho, focado
em seus objetivos, conseguia concentração apenas quando conversava e discutia
em sua mente a melhor forma de se realizar as tarefas. A solidão o mostrou a
realidade, a realidade o entorpeceu. Naquele momento, naquela noite de
madrugada, horas depois de ter visto a última vez o olhar de seu querido pai,
estava ele agora escondido atrás de uma rústica cabana no meio de uma selva,
esperando uma surpresa, mas quando viu, não acreditou.
Um palhaço, com sapatos enormes e coloridos, roupas ridículas e
chamativas com cores que nada combinavam, além de uma gravatinha vermelha cheia
de bolinhas, o rosto pintado de branco, com a boca extremamente rubra, cabelos
arrepiados, nariz vermelho, sai do meio do mato com um riso sarcástico, um riso
assustador para qualquer um que estivesse vendo aquilo, estava sonhando, era só
o que vinha à cabeça de Sebastian, mas não conseguia acordar, não era possível
aquilo, não era realidade, e agora, o palhaço estranho com passos lentos passa
a se aproximar da direção onde o capitão do exército estava escondido, e a cada
passo a velocidade dos batimentos cardíacos aumentava, preferia ele que tivesse
sido um lobo, um urso, até mesmo um marciano que tivesse pousado com seu disco
voador, mas um palhaço era realmente assustador.
Sem conseguir fazer nada ou dizer qualquer coisa, o homem fica congelado
na posição em que se encontra apenas esperando a assombração terminar de
caminhar. Quando isso acontece, nada mais faz sentido na cabeça dele, mas quem
diz que um dia pudesse fazer? E o palhaço, com uma voz engraçada e infantil diz:
- Boa noite Sebastian! Como vai você? Está vivo Sebastian? Onde estão
seus amigos? Você não tem, não é? HUHUHUHU!
- HUHUHUHUHUHUHU! – prossegue ele.
- HUHUHUHUHUHUHUHUHU! – É a última coisa que o capitão ouve naquela
noite.
Na manhã seguinte, Sebastian é acordado logo cedo pelo sargento. Acorda
assustado, sem saber ao certo aonde é que eles estavam, sem saber ao certo quem
era Lambert e ainda se questionando se tudo o que havia visto era realidade. O
sargento, percebendo a preocupação no rosto do capitão, diz:
- Calma, está tudo bem! Olhe que dia lindo faz lá fora!
O homem deitado então repentinamente lembra tudo o que aconteceu. Ainda
consternado com o ataque ocorrido no dia anterior e com o falecimento de seu
pai, levanta com um olhar profundo, sem dizer uma palavra sequer.
Sai lá fora, o sol da manhã toca então seu rosto e ele senta no mesmo
degrau onde sentara na noite que se passou, e mais uma vez se perde em
pensamentos, algo que virou rotineiro em sua vida. Tira um cigarro de seu
bolso, o acende com o isqueiro e passa a fumar. O cantar dos pássaros ali era
maravilhoso, nada como uma manhã no meio de uma floresta, aquele ar puro enchia
então aquele homem de serenidade, de uma hora para outra, parece ter saído do
transe e simplesmente decidido esquecer tudo de ruim que ocorreu, lembrou que
era capitão, não era um mero soldado, precisava agir como um homem e não como uma
marica, assim como havia sido aconselhado um dia fazer. Volta para dentro da
cabana, senta-se na cadeira, Lambert agora estava preparando uma refeição lá
fora, colhendo algumas ervas. Sebastian então abre a janela lateral e tenta
puxar assunto com o seu colega:
- Sargento, estou te devendo uma, mas nem mesmo sei seu nome!
- Não se preocupe capitão, tudo vai ficar bem, você vai ver! Pode me
chamar de Jeremy! Jeremy Lambert!
Jeremy naquele momento era mais do que um companheiro de operação ou um
aliado militar, era algo que Sebastian não sabia há tempos o que era possuir:
um amigo. Juntos naquele dia caçaram um porco selvagem, com a carne passaram o
almoço e a janta. Também descobriram um lago próximo dali, onde conseguiram
peixe e água, se estabeleceram naquela cabana por mais três dias, três longos dias
de calmaria após a tempestade.
O capitão ainda se questiona sobre o provável pesadelo que teve com o
palhaço, tudo aquilo era assustador, parecia tão real, mas então se convence
que nada daquilo era verdade, para a sua sorte.
Voltam então para o acampamento militar, onde encontram aliados que
vieram auxiliar ali após o ataque rival. Consegue, ao lado de seu novo amigo
velar o corpo de seu falecido pai e prestar homenagem póstuma a todos os
soldados mortos em combate. Migram então para a base do norte, e lá eles
recebem a notícia, depois de alguns dias, de que os rebeldes foram contidos, e
o combate havia finalmente terminado.
Sebastian, então decide tirar licença do exército, pelo menos por alguns
tempos, para poder retomar a confiança depois do ocorrido. Precisava beber
álcool, conversar com algum ombro amigo, se afundar em ilusões num ambiente
escuro, num beco de gente perdida, sentar no meio-fio, próximo a um bueiro e contar
piadas dos tempos de caserna, o homem solitário havia se transformado no homem
sarcástico, no homem irônico, nosso velho e bom Sebá. Talvez tenha sido uma
dessas ocasiões, de madrugada, em baixo de um poste com luz fraca que ele tenha
conhecido o homem que hoje dá as cartas, o misterioso Rei. Mas isso é história
para outro capítulo.
Mas chega de saudosismo, usemos agora a nossa máquina do tempo para
voltar ao presente. A próxima reunião estava marcada, e na segunda-feira, na Rua
das Astorgas, 475, encontram-se ao final da tarde Ramon, Calisto e Sebá para reunirem-se
com vossa alteza. O endereço correspondia a uma casa de família, com um belo
quintal ao fundo. Cada um dos três ficou se perguntando se aquilo ali era
realmente a casa do Rei ou se seria apenas mais um daqueles locais estranhos
marcados por ele, a segunda opção parece mais provável.
- Será que é aqui mesmo? – pergunta Ramon, como sempre, com cera
derretendo em sua mão.
- Parece muito familiar pro meu gosto, aquele sujeitinho deve morar é
num barraco a beira da rodovia, isso sim! – responde Sebastian.
- Vamos ver então, não é? – diz Ramon.
Ramon então toma partido e vai até a porta branca daquela residência e
com algumas batidas com a parte de fora de sua mão tenta atrair a atenção de
algum morador.
Segundos depois, um homem alto, mais alto que qualquer um dos três ali, de cabelos loiros e vestindo um suéter listrado atende a porta, e pergunta:
- Pois não?
Os três convidados se entreolham de maneira estranha, afinal, não sabiam
quem era o homem à sua frente. Ramon então responde:
- Nós viemos por convite do Rei, um encontro na casa da árvore.
- Ah, sim, ele me contou, podem entrar, sejam bem-vindos, a casa da
árvore fica no jardim ao fundo, subindo as escadinhas de madeira, ele está vos
esperando.
O homem então guia os três convidados por sua residência, passam por um
corredor estreito, até chegarem à cozinha, de lá, o homem abre uma porta que os
conduz até o jardim. Mais uma vez os convidados se entreolham ainda duvidando que aquela seja mesma a casa do rei, também alimentavam dentro de si uma curiosidade de saber quem era aquele homem que atendeu a porta. Então, ao abrir a porta, ele avisa:
- Só tomem cuidado com o cachorro, ele não é muito amigável.
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